EUA e França ameaçam intervir no Niger rico em recursos: temores de guerra na África Ocidental
Em seguimento aos golpes de estado anti-coloniais, os EUA e a França ameaçam intervir para instalar um regime pró-ocidental no Niger
Originalmente publicado no Geopolitical Economy Report em 05.08.23. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247
O Niger é um importante produtor de ouro e urânio, o último sendo necessário para a produção europeia de energia nuclear. O país tem significativas reservas de petróleo, as quais as corporações estrangeiras querem ter acesso. O Niger também hospeda grandes bases de drones dos EUA.
Estas ameaças ocidentais se seguem aos golpes de estado liderados por oficiais militares nacionalistas e anti-colonialistas nos países vizinhos Burkina Faso e Mali, cujos governos advertiram que uma intervenção seria considerada como um ato de guerra e, portanto, deflagraria um conflito regional.
A África Ocidental é rica em recursos naturais. Ela também é muito estratégica para os EUA e a França.
Quase toda a África Ocidental foi colonizada pela França, que cometeu atrocidades brutais na região.
A França mantém ainda hoje políticas neocoloniais, controlando eficazmente as economias da África Ocidental ao forçá-las a usar o 'CFA franc' como as suas moedas nacionais.O economista de desenvolvimento senegalês Ndongo Samba Sylla descreveu o CFA franc como “uma moeda colonial, nascida da necessidade da França de fomentar a integração econômica dentre as colônias sob a sua administração e, assim, controlar os seus recursos, as suas estruturas econômicas e seus sistemas políticos”.
Paris dita as políticas monetárias e detém muito das reservas em moedas estrangeiras de muitas nações da África Ocidental – incluindo o Niger, Burkina Faso e Mali.
O CFA franc é “uma barreira à industrialização e à transformação estrutural” nestes países, explicou Sylla – que o caracteriza como um “dispositivo neocolonial que segue destruindo qualquer perspectiva de desenvolvimento econômico nos países usuários desta moeda”.
Os EUA têm uma das suas maiores e mais importantes bases de drones no Niger: a Base Aérea 201, que custou US$ 110 milhões para ser construída e custa US$ 20-30 milhões adicionais por ano para ser mantida – num dos países mais pobres da Terra.
O Niger é geoestrategicamente importante para a estratégia do Pentágono na África, Ele se localiza no meio do Sahel, uma região com muitas atividades militares dos EUA e da França, na qual estão estacionadas milhares de tropas em caráter regular.
Washington usa as suas bases de drones no Niger, no coração do Sahel [África sub-Sahariana], para tentar exercitar a dominação militar do Norte e do Oeste da África, em coordenação com as forças que o Comando África dos EUA, ou AFRICOM, aloca em todo o continente.
Historicamente, as relações de subordinação do Niger com as potências ocidentais não proveram o povo do Niger com prosperidade alguma.
O país é um grande produtor de ouro, porém mais de 40% do povo do Niger vive em extrema pobreza.
O Niger também é um dos maiores produtores de urânio do mundo. Este material radioativo é crucial para a produção de energia nuclear na Europa, especialmente na França – onde cerca de um-terço da eletricidade é nuclear.
Um fato menos conhecido é que o Niger também tem consideráveis reservas de petróleo.A empresa de inteligência de mercado S&P Global Commodity Insights advertiu que o golpe de estado de julho no Niger “poderia comprometer os planos do país africano de tornar-se um produtor e exportador significativo de petróleo”.
A empresa descreveu o Niger como “um aliado-chave do Ocidente e um parceiro de segurança e um dos maiores produtores de urânio do mundo”, acrescentando que “acredita-se que o país esteja em cima de reservas de um bilhão de barris de petróleo, segundo a Organização dos Produtores Africanos de Petróleo [African Petroleum Producers' Organization].
A S&P Global Commodity Insights assinalou que o Niger está construindo um oleoduto com o seu vizinho ao sul, o Benin, para transportar exportações de petróleo cru para o Golfo da Guiné e o Oceano Atlântico. O país “está à beira de um mui-esperado surto de produção” e um executivo da indústria petrolífera descreveu o oleoduto como um fator de “mudança de jogo”.
Um ex-funcionário do Departamento de Estado dos EUA reclamou para a firma de inteligência de mercado que, em seguimento aos golpes de estado liderados por oficiais militares nacionalistas no Mali e em Burkina Faso, “os governos nacionalizaram abruptamente as minas de ouro, expulsando os gigantes industriais para fora”.
Logo após o golpe de estado no Niger, apareceram relatos similares de que o governo militar nacionalista decidiu bloquear as exportações de urânio e de ouro para o Ocidente.
A perspectiva de uma intervenção militar estrangeira no Niger e, potencialmente, em outras nações da África Ocidental está verdadeiramente sobre a mesa. Esta não é, de maneira alguma, uma ameaça vazia.
Esta é uma região onde houve exemplos recentes de intervenções ocidentais.
Em 2013 e 2014, a França lançou uma intervenção militar no Mali, um vizinho do Niger.
Numa guerra de mudança de regime em 2011, a OTAN - liderada pelos EUA e com o apoio da França, de outros países europeus e do Canadá – destruiu o estado da Líbia, matando o líder revolucionário de longa data da nação Norte-Africana, Muammar Gaddafi.
Até hoje, uma década depois, a Líbia não tem um governo central unificado. O país tem estado em uma guerra civil destrutiva.
Agora, há uma possibilidade real de que as potências ocidentais que desestabilizaram e devastaram a Líbia possam expandir este caos violento para o oeste e para o sul, para a região do Sahel.
Nacionalistas anti-colonialistas assumem o poder na África Ocidental
Alguns dos líderes militares nacionalistas que tomaram o poder na África Ocidental estão invocando o legado histórico dos movimentos anti-colonialistas.
Em Burkina Faso, um dos vizinhos do Niger, o novo presidente, Ibrahim Traoré, jurou lutar contra o imperialismo, citando Che Guevara e aliando-se com os governos esquerdistas da Nicarágua, da Venezuela e de Cuba.
Traoré inspira-se no antigo líder marxista de Burkina Faso, Thomas Sankara, um oficial militar pan-africanista que lançou uma revolução popular nos anos de 1980.
Traoré chegou a nomear como seu primeiro-ministro um aliado próximo de Sankara, Apollinaire Joachim Kyélem de Tambèla, que diz que supervisionará uma “refundação da nação”.
Alguns destes golpes de estado foram liderados por oficiais treinados pelas forças armadas dos EUA ou da França. Alguns dos golpes instalaram governos militares pró-ocidentais. Mas outros foram lançados por oficiais militares nacionalistas que se opõem ao neocolonialismo francês e ao imperialismo estadunidense, e afirmam seguir políticas mais soberanas e independentes.
As ameaças de intervenções na África Ocidental
Os líderes do novo governo do Niger advertiram publicamente que a França está planejando fazer uma intervenção militar.
Paris está buscando encontrar “maneiras e modo de intervir militarmente no Niger”, disseram as autoridades, declarando que oficiais franceses se encontraram com o chefe do estado-maior da guarda nacional do Niger “para obter a necessária autorização política e militar”, reportou o The Guardian.
O jornal britânico descreveu o presidente derrubado do Niger, Bazoum, como “um aliado das potências ocidentais”.
Juntamente com Paris, o Departamento de Estado dos EUA está coordenando-se ativamente com Bazoum e está planejando trazer de volta o seu aliado ao poder.
Para dar uma cobertura supostamente “multilateral” aos seus planos de intervenção, os EUA e a França têm trabalhado intimamente com a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS – Economic Community of West African States);
A agência Reuters reportou que a ECOWAS e “os chefes de defesa da África Ocidental delinearam um plano de ação militar, caso o golpe de estado no Niger não seja derrubado.
O veículo de notícias britânico enfatizou que “Dadas as suas riquezas em urânio e petróleo, e o seu papel fundamental na guerra contra os rebeldes islâmicos na região do Sahel, o Niger tem um significado estratégico para os EUA, a China, a Europa e a Rússia”.
A ECOWAS impôs sanções ao Niger e o vizinho ao sul do país, a Nigéria, começaram a estabelecer um bloqueio de facto.
Anteriormente, o Niger recebia cerca de 70% da sua eletricidade da Nigéria. Porém, o governo nigeriano, que é um aliado próximo do Ocidente, agora cortou aquele fornecimento de eletricidade.
Pode ser mais fácil falar do que executar uma intervenção estrangeira, porque os vizinhos do Niger assumiram a sua defesa.
Os governos de Burkina Faso e do Mali publicaram um comunicado-conjunto, declarando que “qualquer intervenção militar contra o Niger seria equivalente a uma declaração de guerra contra Burkina Faso e o Mali”.
Estas nações da África Ocidental advertiram que “as desastrosas consequências de uma intervenção militar no Niger … poderiam desestabilizar a região inteira”, conforme reportou a France 24.
Burkina Faso e o Mali também condenaram as “sanções ilegais, ilegítimas e desumanas” impostas pelos governos ocidentais “contra o povo e as autoridades do Niger”.
Os EUA e a França descobrem um golpe de estado na África que eles não gostam
No final de julho de 2023, quando o presidente do Niger Mohamed Bazoum foi deposto, os EUA e a França entraram em ação imediatamente.
Muitos ativistas africanos salientaram a pesada hipocrisia entre esta resposta e a retórica ocidental sobre a promoção da “democracia”
No século passado, os EUA e as potências europeias legitimaram, apoiaram, e até organizaram dezenas de golpes de estado em todo o Sul Global, a fim de fazer avançar os seus interesses econômicos e geopolíticos.
Há uma miríade de exemplos de governos democraticamente eleitos, chefiados por líderes anti-colonialistas, que foram derrubados e, em alguns casos, mortos pelas potências ocidentais.
Um dos episódios históricos mais bem-conhecidos foi o de Patrice Lumumba, o fundador da República Democrática do Congo (RDC).
O Congo foi uma colônia belga. Sob o regime brutal do Rei Leopoldo II, a Bélgica cometeu um genocídio lá, matando a metade da população congolesa.
Lumumba ajudou a liderar um movimento de independência contra o colonialismo europeu e foi democraticamente eleito como o primeiro primeiro-ministro da RDC em 1960.
O presidente dos EUA, Dwight Eisenhower, ordenou que a CIA assassinasse Lumumba. Com a ajuda da agência de espionagem, a Bélgica patrocinou um golpe de estado para derrubá-lo.
O líder congolês democraticamente eleito foi sequestrado e assassinado. Subsequentemente, o seu corpo foi dissolvido em ácido. Restaram apenas alguns dentes dele.
Foi assim que os governos pró-Ocidente trataram os líderes anti-colonialistas durante a guerra fria. Eles patrocinaram golpes de estado para derrubá-los e, subsequentemente, instalaram e apoiaram ditaduras direitistas pró-imperialistas que governaram durante décadas com mãos de ferro.
A resposta ocidental ao golpe de estado de julho de 2023 no Niger foi completamente diferente.
Imediatamente, o governo francês denunciou o novo governo nacionalista liderado pelos militares. O escritório de Emmanuel Macron jurou dar uma resposta forte e rápida, escrevendo que “O Presidente não tolerará qualquer ataque à França e aos seus interesses”, enfatizando especificamente os seus interesses de negócios no Niger.Enquanto patrocina regimes golpistas não-eleitos no Paquistão e no Peru, o Departamento de Estado dos EUA também publicaram uma declaração condenando o novo governo militar no Niger.
“Os EUA dão as boas-vindas e elogiam a forte liderança dos Chefes de Estado da ECOWAS em defesa da ordem constitucional no Niger”, dizem eles.
Referindo-se ao líder pró-ocidental derrubado no Niger, Washington clamou “pela imediata libertação do presidente Mohamed Bazoum e a sua família e a restauração de todas as funções estatais”.
Os EUA acrescentaram que “dá as boas-vindas ao despacho de um representante especial da presidência da ECOWAS ao Niger” e que “permanecerão ativamente engajados com a ECOWAS e os líderes da África Ocidental nos próximos passos para preservar a duramente conquistada democracia no Niger”.
Ao instrumentalizar a ECOWAS e dar uma cobertura “multilateral” à uma intervenção no Niger, os EUA e a França estão retornando à estratégia que empregaram quando usaram a OTAN para travar a guerra na Líbia em 2011.
No mesmo momento, as potências ocidentais também fazem o mesmo para justificar mais uma intervenção militar no Haiti, recriando uma aliança internacional, ostensivamente liderada pelo Quênia, para ocupar aquela nação caribenha.
Niger é um importante produtor do urânio necessário para os planos de energia nuclear da Europa
Um dos principais interesses econômicos que as potências ocidentais têm no Niger é o seu urânio.
A organização anti-pobreza Oxfam publicou um relatório em 2013, detalhando como a França estava ganhando fortunas, lucrando com o urânio no Niger, que é um dos países mais pobres do mundo.
O povo do Niger, que é conhecido como nigeranos (não confundir com os nigerianos da Nigéria), não tiveram quase benefício algum desta extração de urânio.
A Oxfam cita um ativista nigerano, que diz, “Na França, uma em cada três lâmpadas é iluminada graças ao urânio nigerano. No Niger, quase 90% da população não tem acesso à eletricidade. Esta situação não pode continuar”.
“É incompreensível que o Niger, o quarto maior produtor de urânio do mundo e um fornecedor estratégico da Areva [maior empresa de geração de energia nuclear, estatal) e a França, não está se aproveitando da renda desta extração e permanece sendo um dos países mais pobres do planeta”, disse um pesquisador da Oxfam.
As estatísticas mudaram pouco na década passada desde que o relatório foi publicado.
Desde 2023, o Niger é o sétimo maior produtor de urânio do mundo.
Porém, muitos veículos das midias têm assinalado com temor quão importante o Niger é para a estabilidade energética da Europa.
“O golpe no Niger desperta preocupações sobre a dependência da França e da União Europeia (UE) no urânio”, advertiu o website Politico.
“O Niger fornece 15% das necessidades de urânio da França e responde por 20% do total de importações de urânio da UE”, reportou o veículo de mídias. “Em 2021, o Niger era o maior fornecedor de urânio da UE, seguido pelo Cazaquistão e pela Rússia”.
O website Politico acrescentou que “o golpe de estado no Niger poderia ser um desafio para as necessidades de urânio da Europa a longo prazo, quando o continente está tentando acabar com a sua dependência da Rússia, um outro grande fornecedor do urânio usado nas usinas nucleares europeias”.
A energia nuclear é relativamente importante na Europa. Em 2020, ela constituia cerca de 10% do consumo de energia da UE, um pouco menor do que o pico de quase 14% em 2002.
Na França, a energia nuclear é até mais significativa. Desde 1980, a energia nuclear se tornou uma das suas maiores fontes de energia.
Nos anos de 2000, a energia nuclear francesa excedeu o seu uso de petróleo, atingindo um pico de cerca de 40% em 2005. A energia nuclear permaneceu sendo forte em 2021, com 36,5% do consumo total de energia (comparado com 31% do petróleo).
Desde o golpe de estado no Niger, tanto a França quanto a liderança da UE têm insistido que eles não serão afetados, declarando que eles têm urânio suficiente nas suas reservas para durar por alguns anos.
Porém, se o governo nacionalista permanecer no poder no Niger e cumprir o seu alegado juramento de acabar com as exportações de urânio, a Europa poderia enfrentar consequências econômicas.
Isto também ocorre num momento complicado para a Europa, que jurou boicotar as exportações de petróleo da Rússia e reduzir as importações e gás russo.
A Rússia é um dos maiores produtores mundiais tanto de petróleo quanto de gás. Antes da invasão russa na Ucrânia em 2022 e a imposição de duras sanções ocidentais, a Rússia era o maior parceiro energético da UE e o fornecedor número um de petróleo e gás para muitos dos estados-membros.
Algumas autoridades da UE propuseram aumentar a produção de energia nuclear, para acabar com a dependência energética da região na Rússia.
Mas agora, um dos maiores provedores do urânio que a UE necessita para aquela energia nuclear presenciou um golpe de estado liderado por nacionalistas que se opõem às políticas neocolonialistas da Europa.
Isto também ocorre num momento em que diversos países da Europa estão entrando em recessão.
A Alemanha, a superpotência industrial no coração da UE, está se desindustrializando em velocidade vertiginosa, na sua maior parte porque perdeu as suas maiores fontes de energia barata que as suas indústrias necessitam.
O Niger hospeda bases militares estratégicas dos EUA
Além dos planos econômicos estrangeiros para a África Ocidental, as forças militares dos EUA têm pegadas massivas na região – especialmente no Niger, onde operam múltiplas bases.
Uma reportagem de 2019 no PBS [sistema público de notícias nos EUA] assinalou que a presença das forças militares estadunidenses na África revela que o Pentágono tinha quase 800 militares estacionados no Niger. (Este número aumentou mais tarde para cerca de 1.000).
O general Thomas Waldhauser, comandante das forças militares dos EUA na África, descreveu o governo pró-ocidental do Niger como “um bom parceiro numa vizinhança muito, muito ruim”.
A PBS indicou que as forças armadas dos EUA estavam criando uma base em Agadez, no Niger, que “será a maior instalação que os efetivos da Força Aérea dos EUA jamais construiram”.
“Os EUA têm operado missões de drones a partir de uma outra base na capital do Niger desde 2013”, o veículo de mídias escreveu, acrescentando que “Também acreditava-se que a CIA também usava uma outra base de drones no nordeste do Niger”.
O jornalista investigativo Nick Turse, reportando em 2023, descreveu esta instalação dos EUA no Niger, a Base Aérea 201, como “a peça-chave do arquipélago de bases das forças militares estadunidenses no norte e no oeste da África e uma parte-chave dos abrangentes esforços de inteligência, vigilância e segurança nos EUA na região”.
Turse escreveu no The Intercept:
Construída ao preço de US$ 110 milhões e mantida ao custo de US$ 20-30 milhões por ano, a Base Aérea 201 serve como um centro de vigilância no Sahel que é o domicílio dos efetivos da Força Espacial envolvida em comunicações de alta tecnologia via satélite, as instalações do Destacamento Aéreo de Operações Especiais Conjuntas e de uma esquadra de drones – incluindo os MQ-9 Reapers armados – que vasculham dia e noite a região circundante para detectar atividades terroristas. Como um abrigo de alta segurança, a Base Aérea 201 localiza-se dentro de uma “zona de segurança de base” de 25 quilômetros e é protegida por cercas, barreiras, torres de guarda atualizadas com ar condicionado, portos de tiro feitos sob medida e cães militares operando.
O que é impressionante é o simbolismo neocolonial dos EUA mantendo estas instalações militares de alta tecnologia que valem centenas de milhões de dólares no Niger, um dos países mais pobres da Terra, onde a maioria da população sequer tem acesso à eletricidade.
Antes do golpe de estado de julho de 2023, Washington via o governo do Niger como um aliado-chave para a sua tentativa de isolar a China e a Rússia.
Antony Blinken fez uma viagem histórica ao Niger em março, na primeira visita de um secretário de estado dos EUA ao país.
O veículo de notícias Democracy Now assinalou que esta viagem era “parte da crescente competição com a China e a Rússia por parte do governo Biden”.
“O Niger é um dos últimos redutos das parcerias de segurança dos EUA na região”, a pesquisadora da Brown University Stephanie Savell contou ao veículo de mídias.
A visita de Blinken ocorreu apenas poucos meses após a Cúpula de Líderes dos EUA e África promovida pelo departamento de estado em dezembro de 2022, o qual reuniu chefes de estado africanos em Washington, DC, para se encontrarem com Biden.
O departamento de estado escreveu que a cúpula foi “enraizado neste reconhecimento que a África é um ator geopolítico chave” ; em outras palavras, Washington vê o continente como sendo altamente estratégico na sua nova guerra fria contra a China e a Rússia.
Golpes de estado versus revoluções
Uma das fraquezas-chave dos novos governos nacionalistas na África Ocidental é que eles chegaram ao poder através de golpes de estado, não de revoluções populares. Isto significa que eles são menos estáveis e, se a história for um indicador, eles podem ser derrubados em golpes subsequentes.
Apesar da maior parte dos golpes de estado na história moderna terem levado à instalação de regimes repressivos de direita, quase sempre aliados com interesses imperiais ocidentais, há um precedente histórico de alguns líderes esquerdistas chegando ao poder através de gopes de estado.
Um dos líderes revolucionários mais famosos na história da África, o egipcio Gamal Abdel Nasser, ajudou a liderar um golpe de estado em 1952, como parte do progressivo Movimento dos Oficiais Livres – o qual se opôs tanto ao monarquismo quanto ao colonialismo europeu.
Nasser era um nacionalista de esquerda que nacionalizou muitos dos interesses econômicos de propriedade de potências coloniais estrangeiras, implementando algumas políticas socialistas.
Nasser também manteve uma política exterior independente e foi um dos co-fundadores do Movimento dos Países Não-Alinhados.
O líder egípcio ajudou a inspirar os movimentos revolucionários anti-coloniais e movimentos nacionalistas árabes, não só no oeste da Ásia [aka Oriente Médio], mas também no norte da África.
Em 1969, ocorreu um outro golpe de estado liderado por um líder militar de esquerda, Muammar Gaddafi, que nomeou o seu próprio movimento anticolonial e anti-monarquista de Movimento dos Oficiais Livres, como aquele do Egito.
Assim como Nasser, Gadhafi implementou políticas socialistas, usando as riquezas do petróleo da Líbia para beneficiar o povo do país.
Gaddafi criou robustos programas sociais, gastando drasticamente o investimento público em saúde, educação e habitação.
Sob Gaddafi, a Líbia tinha o mais alto padrão de vida em todo o continente africano.
Da mesma maneira, a Líbia de Gaddafi apoiou as lutas revolucionárias em todo o mundo – desde os Sandinistas na Nicarágua, até os Republicanos Irlandeses que resistiam só império britânico, aos Palestinos nativos lutando contra o colonialismo israelense.
Porém, em 2011, Kadhafi foi morto numa guerra da OTAN. Quando os rebeldes extremistas Salafi-jihadistas patrocinados pelo Ocidente assassinaram brutalmente o líder líbio com uma baioneta, a secretária de estado dos EUA Hillary Clinton exultou, ao vivo, na TV: “Nós viemos, nós vimos, ele morreu!”
A guerra da OTAN em 2011 fez colapsar o estado líbio. Atualmente, mais de uma década depois, ainda não há um governo central unificado na Líbia. A nação norte-africana foi encurralada numa guerra civil brutal.
A destruição do governo líbio pela OTAN até trouxe de volta ao país os mercados de escravos a céu descoberto.
Então, há um precedente histórico no continente africano de líderes esquerdistas ascendendo ao poder através de golpes de estado militares. Mas, caso eles não solidifiquem a autoridade e legitimidade do governo através de uma revolução popular, a possibilidade de eles serem derrubados por outro golpe de estado ou por uma intervenção militar estrangeira é muito real.
Na América Latina também ocorreram exemplos disso.
Por exemplo, no Peru, em 1968, ocorreu um golpe de estado chefiado por um líder militar revolucionário, Juan Velasco Alvarado. Assim como Nasser e Gadhafi, ele implementou políticas socialistas, nacionalizando setores-chave da economia – incluindo os bancos, as minas e a energia.
Enquanto promovia os direitos dos trabalhadores e os sindicatos, Velasco fez do Quechua uma língua nacional, provendo a igualdade às comunidades indígenas que haviam sido marginalizadas por governos anteriores (e futuros).
Mas também Velasco foi derrubado por um outro golpe de estado, em 1975, liderado pelo general Francisco Morales Bermúdez, que cancelou muitos dos ganhos progressistas de Velasco.
Um outro exemplo bem conhecido foi o de Hugo Chávez, na Venezuela, que também tentou lançar em 1992 um golpe militar contra o presidente neoliberal do país, Carlos Andrés Perez (comumente conhecido como CAP).
Durante o seu segundo mandato presidencial, que começou em 1989, Pérez implementou agressivas reformas econômicas neoliberais – incluindo privatizações em massa, cortes de subsídios e aumento das tarifas de transporte público. Isso levou a protestos massivos.
CAP respondeu ao levante popular com extrema violência, ordenando que os militares a fuzilar os protestantes. Milhares foram mortos.
Este massacre neoliberal, conhecido como o Caracazo, radicalizou os líderes militares progressistas como Hugo Chávez.
Em 1992, Chávez e diversos outros oficiais militares de esquerda tentaram derrubar o regime de CAP. Eles falharam e foram presos.
A tentativa de golpe transformou Chávez num herói nacional. Ele foi perdoado e libertado em 1994 e, então, concorreu e venceu as eleições presidenciais de 1998.
No entanto, um breve golpe bem sucedido contra o Presidente Chávez que se seguiu em 2002 – o qual foi patrocinado pelo governo de George W. Bush – demonstra como os golpes muito frequentemente são ferramentas das elites direitistas anti-democráticas.
O massivo apoio popular de Chávez dentre os trabalhadores venezuelanos, que cancelou o golpe de estado apoiado pelos EUA em 2002, foi ponto de inflexão para o presidente. Ele se deu conta que devia aprofundar a Revolução Bolivariana e moveu-se mais para a esquerda, na direção do socialismo.
A lição em muitos desses episódios histórico é que, quando não há uma revolução popular – como aquelas que ocorreram na China em 1949, em Cuba em 1959, ou na Nicarágua em 1979 – caso ocorra um simples golpe militar liderado por um progressista ou até por um líder socialista revolucionário, então o governo tende a ser muito menos estável e se torna significativamente mais fácil de ser derrubado.
Efetivamente, no caso de Burkina Faso, esta é precisamente a história.
Thomas Sankara chegou ao poder em em 1983 através de um golpe militar. Um dos seus aliados mais próximos no processo revolucionário, Blaise Compaoré, liderou então um outro golpe de estado contra Sankara em 1987.
Compaoré matou o seu amigo de longa data Sankara e governou essencialmente como um ditador de 1987 até 2014.
Compaoré abandonou as políticas anti-imperialistas e socialistas de Sankara, adotando políticas direitistas e a economia neolibearl, governando através de uma série de eleições fraudulentas, em uma aliança próxima com os EUA e o antigo colonizador, a França.
Este é um dos perigos da atual situação na África Ocidental. Há governos nacionalistas que buscam a verdadeira independência e a soberania; porém, eles chegam ao poder através de golpes de estado, isso estabelece um precedente que um oficial militar direitista pode usar para derrubar o oficial militar esquerdista e impor um regime conservador pró-Ocidente.
Além do mais, estes líderes miliatres de direita frequentemen são capazes de governar por décadas, porque têm apoio dos governos e corporações ocidentais.
É precisamente isto que ocorreu durante a primeira guerra fria. Havia uma série de ditaduras direitistas pró-Ocidente espalhadas pelo continente africano, as quais derrubaram governos anti-coloniais e impuseram os seus próprios regimes autoritários.
Muito líderes esquerdistas anti-coloniais foram derrubados em golpes de estado direitistas patrocinados pelos EUA – de Patrice Lumumba na República Democrática do Congo 1961, à Kwame Nkrumah em Gana em 1966, a Thomas Sankara em Burkina Faso em 1987.
Os governos nacionalistas do Niger, de Burkina Faso e do Mali são muito instáveis; a ameaça de intervenções militares patrocinadas pelo Ocidente poderia desestabilizar esses países, alimentando mais golpes de estado e potencialmente deflagrar uma guerra regional.
A meta transparente dos EUA e da França é reimpôr o controle político da região, explorar os seus abundantes recursos naturais e a sua localização geoestratégica.
O que está ocorrendo na África Ocidental faz parte de um movimento internacional maior, no qual antigos países colonizados de todo o Sul Global – também em regiões da América Latina e da Ásia – estão buscando a descolonização completa, a afirmação do controle nacional sobre os seus recursos e as políticas trabalhistas, econômicas e de segurança, buscando o seu desenvolvimento, independência e soberania reais.
Mas os poderes imperiais não desistirão de maneira alguma sem uma briga.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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